terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Sopro de vida.

Era uma tarde ensolarada, mas a cortina estava fechada, deixando entrar pouca luminosidade, preferia assim. A pouca luz que entrava não era suficiente para iluminar os velhos retratos na estante, já empoeirados, assim não precisava encarar o passado.

A estante que ficava no canto também estava cheio de livros. Metade sem ler, outra metade já esquecida. Aprendera que a vida era assim, cheia de coisas que nunca iria usar e outras que iria esquecer. Se sentia assim: esquecido. Havia esquecido de si próprio, tanto que não tinha coragem de encarar um espelho a algum tempo (a conta de quantos havia destruído já estava perdida), qual era mesmo a cor dos seus olhos? Era uma cor já desgastada, com certeza.

A noção de tempo era algo muito peculiar, podia ficar sentado na sua velha poltrona em frente a janela por dias. Não tinha consciência de levantar e ir pra sua cama ou para o banheiro, sabia que o fazia, só não tinha consciência. Os únicos momentos de rara vivacidade era quando tentavam convencê-lo de abrir a cortina, não abria mão de deixá-la fechada, esbravejava, batia o pé... quando tratavam de outros assuntos só balançava a cabeça distraidamente para que o deixassem logo em paz. Parece que havia conseguido, pois havia algum tempo que não se importavam em tentar puxar assunto ou persuadí-lo a abrir a cortina.

Assim passavam-se os dias...

Os dias passavam...

Enquanto passavam, ele ficava...

E um desses dias, o silêncio foi quebrado por uma batida na porta. Já era final de tarde, não havia mais ninguém para abrir a porta, senão ele. Não quis deixar a companhia de sua poltrona. Não houve insistência, provavelmente um engano, ninguém teria motivos para ir até lá. Não ocupou muito sua mente com isso, não até o dia seguinte, quando aconteceu de novo.

No mesmo horário, pois já estava sozinho, estava um pouco curioso, apenas uma batida simples, sem insistência dois dias seguidos e o fato de quem quer que estivesse o incomodando  preferia bater a tocar a campainha, não notará isso da primeira vez, só agora.

Uma terceira vez isso aconteceu, uma quarta, uma quinta... durante uma semana inteira. Não tinha o menor interesse em levantar para atender a porta, mas a essa altura era algo que esperava o dia todo pra acontecer. Não conseguia explicar. Apenas uma batida lhe causava toda uma apreensão, será que vão bater hoje? Por que não insiste? Por que todo dia, no mesmo horário.

Antes nem notava o tempo passar, agora contava os minutos todo dia antes de baterem a sua porta, e depois para que chegasse o outro dia logo. Gostava do suspense, da dúvida e sempre era recompensado com a batida, e o alivio que se seguia após a confirmação do que já sabia que iria acontecer era algo quase tangível.

Duas semanas ininterruptas após a primeira batida algo a diferente aconteceu. Nada aconteceu. Não houve batida alguma. Sentia como se seu próprio coração tivesse parado de bater. Apurou melhor seus ouvidos, talvez tivesse se distraído, talvez tivessem batido muito fraco desta vez, talvez estivessem se atrasado... mas nada realmente aconteceu. Sequer conseguiu dormir aquela noite.

No dia seguinte tinha certeza que tudo voltaria a como foram as duas semana anteriores, provavelmente algum imprevisto no dia anterior havia ocorrido, tudo ficaria bem hoje, era só esperar, a batida viria, era só o que queria, era só o que pensava. Mais um dia de silêncio.

Agora estava determinado, caso voltassem a bater na sua porta hoje, ele iria abrir, era uma promessa na verdade. Começou a se preparar, ficou o tempo todo esticando as pernas, agarrava com força os braços da poltrona para ter a agilidade para se levantar e ir o mais rápido que seu velho corpo lhe permitiria para atender a porta. Já estava sozinho, a tarde já se encaminhava para o seu fim, a qualquer instante...

Toc, toc.

Com algum esforço se levantou, apoiando-se na estante atravessou a salinha e chegou ao hall de entrada, teve certeza de ouvir passos se afastando, não podia perder esta chance. Sua respiração estava pesada, talvez não chegasse a tempo. Finalmente colocou a mão em sua maçaneta, hesitou. Já não ouvia mais nada, perderá sua chance, o medo natural de encarar o mundo real de novo misturado a sua clara derrota o fizeram baixar a cabeça e encostá-la na porta. Olhando pra baixo viu um papel.

Alguém havia jogado por de baixo da porta. O esforço pra se abaixar e pegar o papel foi imenso, quase não conseguiu se reerguer. Ofegando muito, já com o papel em mãos, abriu-o:

"Abra a janela"

Aquelas três palavras mexeram com ele de tal modo que não conseguia explicar. Com o dobro do esforço voltou a sala e parou em frente a janela, novamente hesitou. Recuperou um pouco do fôlego e colocou a mão na cortina, não sabia mais no que pensar, puxou.

Um lindo dia era emoldurado pela sua janela, um pôr do sol banhava todas as casas da vizinhança, crianças corriam pela rua com suas bolas e pipas, outra chorava ao ver seu sorvete espatifado na calçada, um jovem casal se beijava ao pé um uma árvore que tinha suas folhas balançadas pelo vento. Via as folhas balançarem. Sentia as folhas balançarem. Sentia a brisa em seu rosto ao mesmo tempo que perdia o equilíbrio  e caía de costa no chão.

No dia seguinte foi encontrado morto na sala. Sentado na poltrona, com a janela fechada e um sorriso no rosto.

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